AS QUALIDADES ÁTMICAS
- José Joaquim Francisco Sommer
- 22 de abr. de 2020
- 9 min de leitura
Atualizado: 28 de jan. de 2021
1- PRELIMINARES:
Como o próprio nome diz, são qualidades que emergem do coração, ou seja, mais precisamente do Atman, o que está ligado à purificação das cinquenta propensões dos chakras, representados simbolicamente por pétalas. Esta purificação das propensões é representada nas imagens de Kali pelo colar de cinquenta cabeças cortadas. Essas qualidades crescem cada vez mais pela prática de meditação no Atman, aproximando da Grande Virtude que é a consciência de que Eu sou Ele e Ele é Eu, princípio do amor universal.
A princípio, o praticante de Yogavidya, enquanto desenvolver essa purificação de sentimentos, deve procurar se aproximar cada vez mais dos ideais expressos por essas nobres qualidades.
A purificação expressa pelas oito qualidades lembra a máxima que se encontra na Bíblia, no Livro de Moisés, que diz: “Não odiarás o teu irmão e amarás o próximo como a ti mesmo”. No Evangelho vamos encontrar nas palavras de Jesus: “Amarás o próximo como a ti mesmo, assim como Eu vos amei”. Ensina-se essa máxima como sendo um Mandamento. Sem dúvida, para os principiantes no caminho espiritual será um Mandamento, pois ainda não chegaram a um nível elevado de purificação de sentimentos, equivalendo neste estágio do progresso espiritual a afirmar: “Terás o zelo com o próximo como tens zelo por ti”. Para seres já mais avançados na senda espiritual, cujos sentimentos se aproximaram do amor universal, serão não mais um mandamento, porém um verdadeiro ato de amor, o que é realizado plenamente por Grande Ser, como fez Jesus, exortando os discípulos a se aproximar e realizar aquele amor completamente desapegado por todos os seres, no princípio de sentir as alegrias e tristezas do próximo como se fossem suas próprias alegrias e tristezas. Significa amar a Deus que está no próximo como Deus que está em si.
2- AS QUALIDADES ÁTMICAS:
a) Anasuya (ausência de inveja)
O termo sânscrito apresenta um sentido bem amplo. Refere-se essencialmente a uma característica de personalidade não malvada, não maliciosa e não odiosa. Ainda significa ausência de inveja e boa vontade.
Na tradução do Sanátana Dharma Dípika define-se como ausência de inveja e tolerância. Em suma, trata-se de personalidade bondosa, que é conhecida como uma pessoa de bom coração, ou seja, a sua consciência está plenamente estabelecida a partir do chakra Anahata purificado para cima, aproximando do Ajna Chakra. Evidentemente, uma pessoa nessas condições será tolerante e a consequência da tolerância será a capacidade de perdoar.
O Gita, no verso 4 – Cap. IV, refere-se, entre várias ciências, àquela referente ao perdão e também aos seus perigos e aos meios de superá-los. No Evangelho, o Mestre Jesus foi perguntado quantas vezes se deve perdoar. Seria sete vezes? Então o Mestre respondeu: Não sete vezes, porém setenta vezes sete. Ora, sete vezes setenta dará 490, número cuja soma dos algarismos dará 13, que é também o valor numérico da palavra amor em hebraico, ou seja, “ahava” e “ehad” que significa “um” ou “unidade”. A mensagem oculta se refere ao fato de que o perdão constrói o amor e o amor leva à unidade.
No Mahabharata, conta-se a história de um personagem de nome Shishupal, que esteve presente na coroação de Yudhistira junto com os irmãos Pândavas e o próprio Senhor Krishna, além de outros convidados. Durante a celebração, chegou o momento para decidir quem era o convidado mais importante e, portanto, o primeiro a ser honrado. Bishma disse que o Divino Avatar Krishna era o primeiro e dever ser adorado. Todos concordaram, exceto Shishupal que era um rei demônio poderoso. Ele se levantou para ofender Krishna no meio da assembleia real. Continuou intermitentemente a proferir ofensas menosprezando os gloriosos atos de Krishna, mostrando ódio aos que eram leais aos Pândavas e a Krishna. Então Bishma relatou à assembleia a história estranha do nascimento de Shishupal e as origens da animosidade contra Krishna. Ele explicou que Shishupal nasceu num corpo deformando com três olhos e quatro braços e gritando como um macaco. Entretanto, contou-se a sua mãe que o menino se tornaria normal se fosse colocado nos braços da pessoa certa, que ironicamente foi a pessoa que algum dia iria matá-lo. A mãe convidou parentes para segurar o menino deformado, porém nada aconteceu, até que chegou aos braços de Krishna. Neste momento, o menino se tornou normal. A mãe, pressentindo algum evento nefasto no futuro, pediu a Krishna para nunca destruir o seu filho, seja o que ele fizer. Krishna, entretanto, prometeu que ele iria relevar e perdoar apenas cem erros e nada mais. Assim, quando Shishupal começou os insultos a Krishna, durante o Rajasuya de Yudhistira, Krishna ouviu serenamente. Permaneceu em silêncio até que o demônio pronunciou o seu centésimo primeiro insulto e ainda desafiou Krishna para um luta. Então Krishna se levantou, invocou o poder de seu disco girante no seu dedo indicador e, num lance relâmpago, cortou a cabeça de Shishupal. Neste instante, um feixe luminoso saiu de Shishupal e entrou no corpo de Krishna. Obviamente, a história é simbólica. O feixe de luz que saiu de Shishupal e entrou em Krishna significa que Shishupal foi redimido e o seu Atma (Essência Divina) se incorporou ao Paramatma (representado por Krishna). É preciso salientar que quando se diz Atman unido a Paramatma não significa perda de individualidade. Se assim fosse, certamente não teria sentido falar na Hierarquia Universal dos Irmãos Maiores.
Outro detalhe, quando se diz nas escrituras que Krishna cortou a cabeça de Shishupal, significa metanóia, ou seja, a mente impura foi cortada, dando origem a uma mente redimida. Em termos espirituais, perdoar cem vezes ou como está no Evangelho, significa perdoar sempre. Entretanto, não significa que se vá dirigir a um indivíduo que nos prejudicou e anunciar-lhe que nós o perdoamos. Se o Gita se refere à ciência do perdão, significa antes de tudo perdoar mentalmente, com pedidos de oração para aquele que nos prejudicou. Na prática do Ngondro do Budismo Tibetano, que se constitui de prostrações sucessivas com pronunciamento de mantras, o praticante deve imaginar que à sua direita está o seu pai e à esquerda, sua mãe e na sua frente as pessoas de que ele não gosta. Imaginará também que lá em cima, no céu, se encontra Amithaba, Divindade que parece ser o próprio Senhor Narayana. Imaginem prostrar-se diante de pessoas de que você não gosta! Certamente não precisamos ir tão longe, pois isto é exigir demais de nós na categoria de seres humanos comuns (pashus, viras e devas inferiores).
O Mestre Ananda Murty dizia que o que alguém fez de errado com você, pode-se perdoar. Porém, o que alguém fez de mal a uma comunidade inteira você não pode perdoar. Em suma, deve-se perdoar sempre quando existe um real arrependimento por parte daquele que errou, não apenas por palavras, porém por atos. Ainda assim, pode-se perdoá-lo mentalmente ainda que não tenha se arrependido.
b) Daya (compaixão)
É a compaixão, que no diálogo entre Narada e Yudhistira, conforme consta no capítulo XI do 7º livro de Bhagavata Purana, dentre os trinta artigos da Lei Eterna, a compaixão se segue logo após a Verdade.
A compaixão é um sentimento decorrente do gradativo crescimento da consciência de que Eu sou Ele e Ele sou Eu (Pandeya). Compaixão significa sentir as alegrias e tristezas do próximo como suas próprias alegrias e tristezas. É transformar a máxima “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” de mandamento para sentimento. A compaixão desenvolve a solidariedade, a caridade, a não violência (Ahimsa) e a paz.
c) Shanti (quietude, tranquilidade e paz)
Significa quietude, tranquilidade e paz. Shanti decorre da realização de várias coisas como segurança, fé, confiança, contentamento e paz consigo mesmo. Não podemos esquecer da influência do ritmo respiratório do estado psicológico da pessoa. Basta observar quando você está nervoso, ou com raiva, ou com medo para verificar como sua respiração se altera, podendo sentir-se sufocado. Entretanto, se você estiver num ritmo respiratório suave, ligeiramente devagar e profundo, você verá como o seu estado muda emocionalmente.
É muito importante também o canto de mantrams seja como vaikhari, upanshu ou manasa (em voz alta, murmurando ou mentalmente). O canto de bhajans (cantos espirituais) também é uma ajuda preciosa. Os mantrams podem ser cantados (kirtam) inclusive com movimentos de dança. Expor-se ao sol (com os devidos cuidados,) mormente com atitude de receber energia solar, é outro auxílio para a mudança do estado emocional. A vida deve estar também num ritmo em termos de Samnyasa e Tyaga. Samnyasa significa executar todos os nossos atos com perfeição maior possível e com vontade e amor, com base nos quatro pilares da vida, ou seja:
- Gnana – com conhecimento do que se faz.
- Iccha ou Bhakti – com boa vontade, desejo de realizar e amor. Com fé de que tudo vai dar certo.
- Kriya ou karma – é a execução, efeito dos atos.
- Yoga – é a síntese dos três anteriores.
Assim teremos uma vida de paz e harmonia e teremos progresso espiritual com aprimoramento da meditação.
d) Aspruha (ausência de cobiça)
Significa ausência de cobiça. A cobiça surge de um desejo incontrolado. É a insatisfatoriedade levada ao extremo. Assim na senda espiritual o desejo deve ser purificado. Desejo deve-se inserir nas nossas gunas (qualidades) e karma (nossa função). Cada um deve seguir o seu próprio caminho. Devemos querer progredir dentro de nossas características de guna e karma. Nossos desejos dever se limitar dentro de nossas reais necessidades para conduzir uma vida plena de paz e alegria, tendo abundância e fartura sem passar necessidades. Em nossas preces e na cerimônia da saúde, pedir aquilo que for bom para nós e para ajudar com alegria a todos os seres.
e) Shaucha (pureza integral física e de coração)
Coração purificado significa a purificação das cinquenta propensões do chakras, ou seja, irradiados pelo nadis dos chakras, representados simbolicamente por pétalas. As propensões negativas se encontram nos chakras Suadhistana e Manipura e em metade, mais ou menos, do chakra Anahata são também negativas. Para isto, a pureza física também é necessária. Por isso, a alimentação deve ser sattwica (pura). Pode-se concordar plenamente com as palavras “Mens sana in corpore sano” atribuídas a D. Bosco, embora parece que ele se referiu mais propriamente a exercícios físicos, sem dúvida necessários.
Entretanto, aqui entramos no capítulo de Mitahara, a dieta yóguica que pode ser de preferência sattwica. A tradição baseada na passagem do Evangelho de que “o que entra pela boca, não é importante, porém o que sai da boca que vem do coração” não coloca a qualificação nos alimentos. Porém, veja o que disse o Mestre, segundo o Evangelho da Vida Perfeita (ou Evangelho dos Doze Apóstolos), talvez o único escrito em aramaico: “Portanto, escutai-me, nem apenas coisas impuras, que entram no corpo, tornam o homem impuro, porém muito mais pensamentos maus e impuros, que partem do coração, tornam a vida interior do homem impura e como também dos outros. Por isto, dominai vossos pensamentos e purificai os vossos corações e mantenham vossa alimentação pura”. Então, bastante diferente do que conta nos chamados Evangelhos Canônicos.
Cabe acrescentar que alimentos impuros do tipo rajásicos e tamásicos tornam a mente agitada, o que prejudica profundamente a prática da meditação. Obviamente, além dos cuidados médicos, a prática de exercícios físicos é extremamente importante. Citam-se natação, corrida, ginástica, etc. Dos exercícios orientais, citam-se a Kaushiki ou Lasya, Tândava (reservada para pessoas mais jovens), Hatha-Yoga, Yoga Sikh, etc. Faremos aqui um parênteses para falar sobre a Hatha-Yoga. Os temores que rodam sobre a Hatha Yoga apresentam alguns aspectos de verdade, porém não é motivo de condenação geral dessa prática. Não vamos entrar em detalhes aqui sobre o que poderia suceder, pois temos uma monografia própria sobre o assunto. Certamente não se dever permanecer na prática de uma só Asana, porém sempre passar de uma postura para outra. Com relação ao pranayama que acompanha a prática de Asanas, chamamos a atenção para a respiração bipolar que não pode ser praticada com mais de seis ciclos completos por dia. Não conhecemos limitações para a respiração do fole, muito usada na Hatha Yoga.
f) Anayasa (infatigabilidade)
Significa infatigabilidade. Não desistir de imediato perante as dificuldades da vida. Se tiver insucesso, procure levantar-se de novo e reconstruir a sua vida. Fortaleça pela fé, pela esperança e paciência. Procuremos desenvolver a nossa força de vontade.
Um ótimo coadjuvante neste sentido é a prática de Upavasa (jejum). Upavasa significa “morar perto de Deus”. É especialmente indicado para a prática do jejum a dia de Lua Cheia e Lua Nova. Não deve ser praticado por pessoas doentes, fracas, mulheres grávidas ou que amamentam filhos. Para os praticantes em geral o jejum deve ser feito com água. Para começar, a abstenção de alimentos deve se prolongar do nascer do sol até o por do sol e para praticantes mais avançados, do por do sol do dia anterior até o nascer do sol do dia seguinte, desde que a sua saúde permita, e nada além disso.
Anayasa significa também paciência para obter resultados na prática de Yoga, ou seja, sem pressa nem pausa. No Gita, Krishna diz: “Partha (Arjuna), não cedas à inação, isto não é digno de ti; ò tu conquistador, rejeite esta opressiva fraqueza da mente, empreenda a elevada ação". Isto é Anayasa.
g) Mangalam (irradiação de felicidade)
Desejo de que todos os seres tenham bem estar. É uma conseqüência do despertar de elevados sentimentos de amor universal. Observa-se que se trata da irradiação de amor e felicidade para todos os homens e também para os demais seres, principalmente para aqueles de nível elevado na escala da evolução.
Os Grandes Seres possuem o poder de irradiação de felicidade não somente para entidades próximas como seres muito distantes, podendo atingir o mundo inteiro. Este é o caso de Sri Bhagavam Mitra Deva cujo trabalho não é com a sua presença física junto aos povos, porém na obra no plano sutil com irradiação poderosa para o mundo inteiro.
De forma similar, muitos mestres yogues jamais foram vistos em público. Nós todos podemos purificar os nossos sentimentos a ponte de irradiar felicidade ainda que de menor alcance. Irradiação de felicidade é um poder que nasce com um profundo amor, um desejo ardente de bem estar para com todos os seres.
OM TAT SAT
* Texto de autoria de José Joaquim Francisco Sommer - Emissário da Suddha Dharma Mandalam, Presidente do Ashram Krishna, de Belo Horizonte
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